Pesquisar
domingo, 16 de outubro de 2016
Dos Diálogos que Estabelecemos com o Passado
Era um dia de verão. O ano, 2005. Dois casais de intelectuais alemães ligados ao Goethe Institute haviam cruzado o Atlântico para conhecer um jovem escritor com cuja obra tiveram contato através de uma amiga germano-brasileira que tinham em comum, a qual, após ler trechos de duas obras em gestação, intituladas PARVOLÂNDIA CONVULSIONADA e AS CARTAS TROCADAS ENTRE ADOLF HITLER, O CORONÉ E O DIABO, havia se convencido de que estava diante de um achado invulgar. A intuição desta menina a levou a traduzir trechos destes dois trabalhos para o russo, alemão e inglês, enviando-os para várias instituições globais ligadas à cultura. O encontro foi marcado em uma das barracas da Praia de Piatã, na orla marítima de Salvador. Os estudiosos, dois dos quais com formação em Literatura Alemã, esperavam conhecer o dono da obra que tanto os havia intrigado, ao brincar com um componente completamente extinto na Literatura Ocidental, mas que, por muito tempo, a brindou com nomes como Dante, Cervantes, Voltaire, Kafka e Swift: a sátira. O "sátiro" em questão era esse moço da foto: Ivo Sotn - eu mesmo. Um jovem que trouxe consigo um sentimento inato sobre as coisas do espírito e, por esta razão, a ideia de que a "cultura" produzida para agradar as massas (formadas por pessoas rasas) tem sempre o objetivo de fazer do espectro a própria essência; neste caso, para agradar a demanda do consumo por coisas cada vez mais baratas e acessíveis ao grande público, um espantalho tosco e vulgar é preenchido com os mais pobres farrapos e posto no lugar da estátua nobre e imponente da deusa Literatura. Desta forma, a sátira, como tantas outras formas humanas de transcender a mediocridade, foi banida de nossa "cultura" e a Literatura - não apenas em razão deste banimento - violentada, aviltada e tornada sem brilho e ridícula. É o preço que se paga quando se confunde UTILIDADE com CULTURA. Esse sentimento juvenil e indomável, que até os dias atuais arde em meu peito e resiste a todas as formas de aviltamento da individualidade e da essência, encontrou eco em muitas das ideias de Nietzsche sobre este assunto. Para mim, não apenas a Literatura, mas todas as mais genuínas expressões da alma humana devem estar acima de qualquer concessão ou adequação aos gostos da maioria. Só desta maneira alguém pode ser livre.
Foi muito curioso e divertido o nosso encontro. Os quatro estrangeiros haviam construído, de acordo com a análise em meus escritos, uma figura completamente diversa da que encontraram. Acreditavam que encontrariam um ser de aspecto um tanto mórbido: pálido, com olheiras e ar de quem costuma perder noites se dilacerando diante das questões humanas. Lembro clara e particularmente da expressão que a Johanna, a primeira do grupo a me avistar, em razão da posição de sua cadeira na areia da praia, fez, quando a Mikaela, minha amiga e intérprete, me saudou, sorrindo:
- Ivo!
Eu estava de sunga, molhado por conta de meu mergulho habitual de saudação à uma das filhas mais belas da Mãe Natureza: a Mar (penso "no" mar sempre no feminino, com seu perfume, sua grandeza, sua beleza, seus mistérios, sua força, na verdade, a Mar se tornou um substantivo masculino, com um deus masculino como seu guardião (Poseidon/Netuno) de acordo com as mitologias greco-romanas, porque foi o gênero "masculino", com sua mania de amar, santificar e eternizar a imagem do homem e do falo em todas as coisas, que, submisso a este amor, nomeou todas as coisas - vide, como exemplo, a palavra orquídea, que se refere a um lindo grupo de plantas cujas flores, em tudo, remetem à mulher, seja por sua delicadeza, seja pela beleza ou pelo fato de suas flores lembrarem nitidamente a vulva feminina.
Orquídea é uma palavra grega e, por incrível que pareça, quer dizer testículos, isso por conta dos dois tubérculos encontrados nas espécies do gênero orchis, que lembram esta parte do corpo masculino. Detalhe: tubérculos são órgãos para a reserva de energia que algumas plantas desenvolvem, se situam sob a terra e constituem uma das partes mais rústicas da planta e menos atrativa, em relação às flores. Como tendemos a buscar e a projetar mas coisas aquilo que amamos e com que nos identificamos, os cientistas olharam a orquídea das raízes às flores e procuraram algo sobressalente com que pudessem nomeá-la: ignoraram a beleza vulvar de suas flores e viram um par de testículos, mesmo que enrugados e sujos de terra, com suas raízes pendentes...).
A Johanna sorriu pra mim e falou com a Mikaela, em alemão, algo do tipo:
- Deixe de gracinhas, Mikaela, ele é um surfista ou algo parecido. Onde está o Ivo Sotn que procuramos?
Mikaela traduziu essa recepção e nós dois rimos muito. Eles também riram, só que como se tivessem desconfortáveis por terem cometido uma gafe. Cumprimentei a todos e tomei meu lugar à mesa. Na medida em que começamos a conversar, eles falando em alemão, eu em português e a Mikaela literalmente pressionada entre dois idiomas, fazia suas acrobacias verbais, tentando repassar o mais fielmente possível a essência de cada pergunta e de cada resposta.
Enquanto Mikaela foi traduzindo minhas motivações para a criação de Parvolândia, uma expressão iluminada de muito interesse tomou os rostos de todos. Quando eu disse que Parvolândia traduzia-se, literalmente, por "Terra dos Parvos", todos riram bastante.
Esta foto é desta época, não necessariamente deste dia, mas desta época tão especial em minha vida, onde grande parte de meu tempo era consumido à beira mar, na praia, trabalhando em meu notebook como ghost writer, na Praia do Flamengo, em Salvador, ou na Cabana NEFERTITE, de minha irmã, que ficava ao lado da cabana NO STRESS, do amigo Luca, na Praia de Piatã. Lá, oferecíamos para clientes de todas as partes do Brasil e do mundo deliciosas iguarias à base de frutos do mar e incríveis drinks tropicais. Era interessante interagir com pessoas, especialmente mulheres - para mim - de diversas partes do mundo.
Daquela conversa entre intelectuais estrangeiros surgiu uma bolsa de estudos informal, que consistia em eu me mudar para Dortmund ou Leipzig, na Alemanha, para estudar literatura alemã, através do idioma alemão, que eu aprenderia. A ideia era me colocar, depois de familiarizado com o clima e a cultura, no Goethe Institute. Fazia parte da proposta uma casa para morar em Bergisch GladBach (caso eu optasse por Dortmund) e um trabalho de meio período ligado ao Ministério da Cultura alemão, com o qual eu me manteria. Optei por Dortmund em razão de sua proximidade geográfica com vários países europeus, como Bélgica, Holanda, Luxemburgo, Suíça. Seria bem interessante viajar nos fins de semana entre estes países... até que uma tempestade se aproximou...
Por muito tempo foi difícil conviver com a ideia de que o Estado brasileiro transformou meu sonho num pesadelo. Mas eu precisava continuar caminhando, sozinho, em meio a selva obscura... Encontrei ao longo desta caminhada alguém muito, muito, muito especial: minha Herlene. Com ela iniciei uma nova guerra contra as violações de nosso Estado Suinocrata. Com ela derrubei uma Portaria Ministerial. Com ela fiz o Estado ajoelhar-se diante de um trabalho seríssimo, com ela, sofri uma grande perseguição, com ela iniciei uma nova história, com ela, tive meu Anthony, nosso solzinho particular, que tem nos iluminado e dado tanta alegria, com ela, luto por nossa família. A vida é mesmo estranha. Foi preciso que o mundo desabasse sobre mim para que eu conhecesse a pessoa mais importante de toda a minha vida e realizasse um dos trabalhos mais notórios no complexo mundo científico das células-tronco hematopoiéticas, um trabalho cuja excelência transpôs os limites de diversas ciências. Quantos jornalistas, advogados, promotores, procuradores e pesquisadores do campo da hematologia podem exibir um trabalho assim https://m.youtube.com/watch?v=6EqQu6F-mp8 ???
Eu posso e isso foi graças ao conhecimento que precisei acumular para sair dos escombros de tragédias que se abateram sobre mim depois daquele dia feliz e auspicioso, passado entre intelectuais, à beira mar. Depois daquele dia, fui sequestrado, roubado e torturado por policiais militares, que se interessaram muito ao me abordarem aleatoriamente e descobrirem que eu tinha em meu poder a quantia de 1.200 euros - dinheiro vindo da Alemanha para que eu cuidasse dos preparativos para a minha viagem. Reagi com um soco às agressões físicas e verbais de um dos policiais, o qual caiu, ao receber de minha pessoa um belo soco no queixo. Não foi uma boa ideia, pois eram três e eles estavam armados. E eram policiais brasileiros...
Tive que conviver com o diagnóstico doloroso da leucemia de Evelyn... Lutei, tentando salvá-la e concertar as coisas. A via escolhida não foi das melhores: o sequestro de uma pessoa inocente e a tentativa de obter, através dele, a transferência de nossa Evelyn para o hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, além da recuperação de meu dinheiro e bens roubados pela polícia. Foi um dia terrível e muito difícil para mim, pois sempre fui um amante das mulheres, do ser feminino e das liberdades individuais. Fazer aquilo foi uma agressão perpetrada contra vítima, sua família e contra mim mesmo. Foi doloroso agir daquela maneira com uma representante do ser que sempre amei, respeitei e defendi, o ser feminino. Naquele dia os planos eram sequestrar um ônibus, libertar todas as mulheres, crianças e idosos e atravessá-lo na Avenida Octávio Mangabeira, para parar a cidade de Salvador. Era um dia muito quente e abafado, com muitos policiais na rua, o que poderia precipitar um confronto letal para mim, uma vez que minha arma se tratava apenas de um simulacro, sem qualquer poder de fogo. Quando entrei na Clínica Ser, onde tomei a refém, minha ideia era só sentar na sala de espera, no andar superior, e pensar melhor as circunstâncias. Foi quando ela (a refém) entrou. Trocamos alguns olhares, depois algumas palavras. Trocamos telefones. Ela e a amiga que a acompanhava foram chamadas pelo médico. Enquanto eu permanecia na sala de espera, fui tomado por uma tristeza profunda, pois estava a um passo de cometer a maior loucura de minha vida, de onde só sairia preso ou morto, e deixaria para sempre o mundo e tudo o que eu mais amava nele: sol, natureza selvagem, artes, a Mar e aquilo que havia constituído até ali a minha maior razão de ser: as mulheres... Foi tomado por este pensamento que decidi fazer daquela menina minha refém. Ela era uma mulher muito atraente e havia se sentido atraída por mim no momento mais crítico de minha vida até então. Eu sabia que seria muito difícil para ela toda aquela situação, mas fui egoísta e desejei passar aqueles que poderiam ser os últimos momentos de minha vida na presença do ser que mais amei e com quem sempre me mantive em comunhão: o ser feminino. Enquanto pensava assim, prometi a mim mesmo que daria o melhor e o pior de mim para que, ao final da ação, ela voltasse para casa. Foi assim que tudo aconteceu...
É impossível olhar para esta foto e não ter todo esse filme passando em minha mente. É um dos filmes que constituem minha vida, minha essência... Por muito tempo o evitei e até tentei apagá-lo, hoje, ao revê-lo, me parece muito distante, como se tivesse acontecido em um livro ou produzido num estúdio. Certa vez a Clarice Lispector escreveu que cortar os próprios erros era uma tarefa muito perigosa, pois talvez fosse justamente um erro a coluna responsável pela sustentação de todo o edifício...
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário